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Sem diversidade de ideias: evento na USP traz monólogo sobre a resistência palestina
O debate, próprio do ambiente acadêmico, não foi bem-vindo, na discussão encabeçada pelo professor Reginaldo Nasser.
Por Nina Lobato
No dia 22 de maio de 2019, eu tive a oportunidade de ir a um evento acadêmico, intitulado "Palestina Como Polo de Resistência: de Bolsonaro a Netanyahu", na FFLCH-USP. O propósito da participação de membros da equipe acadêmica da StandWithUs Brasil nesse tipo de evento é: permitir que os profissionais envolvidos com o setores diretamente ligados à educação possam ouvir e compreender as ideias de diversas áreas de pesquisa e bases ideológicas para que, assim, possam contribuir com a educação sobre geopolítica do Oriente Médio e conflito israelense-palestino voltada a diversos setores da sociedade, incluindo o ambiente acadêmico.
O presente relatório é dividido em dois momentos: o primeiro, com título “As Ideias Apresentadas no Evento Acadêmico”, no qual o leitor poderá ler as principais ideias dos membros da mesa condensados numa única descrição e, o segundo; intitulado “Análise do Evento”, no qual a autora do presente relatório apresenta as suas opiniões sobre o mesmo. Ambos podem ser lidos fora da sequência sugerida.
Com base nas explicações dos alunos, professores e lideranças civis envolvidas no evento acadêmico "Palestina Como Polo de Resistência: de Bolsonaro a Netanyahu", eu tive a oportunidade de perceber que os participantes lutam contra a opressão do imperialismo dos Estados Unidos, a opressão contra os árabes-israelenses, e são à favor de um debate de ideias no qual o contraditório seja exposto. O problema é que, aparentemente, eles não sabem muito bem o significado dessa afirmação.
Imagem I: flyer de divulgação do evento. Fonte: ESPP
AS IDEIAS APRESENTADAS NO EVENTO ACADÊMICO
O evento acadêmico em questão foi organizado pelo grupo Estudantes em Solidariedade ao Povo Palestino (ESPP), em parceria com outros polos acadêmicos da USP-SP, e tinha como ponto máximo uma mesa de discussão composta por: Prof. Dr. Nasser (PUC-SP), Gal Souza (Soweto) e Reda Souied (líder comunitário).
A principal ideia apresentada no evento foi que as dinâmicas das Relações Internacionais têm sua base em um modelo de domínio de espaço, populações e recursos. Nesse contexto, após a segunda guerra mundial, o Oriente Médio foi palco de um experimento de controle europeu no qual o Estado de Israel foi criado, artificialmente, pelas superpotências. Após a vitória da Guerra de Independência de Israel, esse país se tornou um aliado dos Estados. Hoje, Israel representa uma nova forma de colonização no Oriente Médio; uma espécie de posto avançado do exército americano e um braço da Otan na região.
Segundo os preletores, o imperialismo dos Estados Unidos, que tem como protagonista principal, no Oriente Médio, o Estado de Israel é perverso e tem como objetivo controlar toda a região. Portanto, mais correto seria definir o conflito israelense-palestino como um conflito entre o povo e o colonialismo. Nesse sentido, a causa palestina é um polo de resistência que pode e deve ser utilizado como base para unificar as lutas de minorias no Brasil e no mundo. É necessário que os povos oprimidos do mundo se unam - e se inspirem na luta palestina - para dar um basta ao colonialismo, imperialismo, racismo, o problema do sionismo, e aos mecanismos de opressão de modo geral.
E esta não é uma luta fácil. Por quê? Porque o Estado de Israel possui uma ideologia de segurança, ou seja, a indústria de guerra de Israel vende os produtos da máquina de opressão para todo o ocidente através de acordos de cooperação comercial. É necessário que vários países, inclusive o Brasil, corte relações com Israel, como Cuba, Venezuela e Bolívia fizeram numa ação em defesa dos direitos humanos.
Por fim, tendo em vista que Israel é parte de uma estrutura de opressão colonialista do imperialismo dos Estados Unidos, não é possível aceitar a narrativa (ou existência) do sionismo de esquerda, pois não é possível ser de esquerda sem ser crítico dessa estrutura de opressão à qual Israel é parte fundamental.
Entre as fontes utilizadas para justificar essas ideias, destaco: (1) o poema "Today, my body was a TV'd massacre and let me just tell you", da poetiza Rafeef Ziadah, (2) gráficos da "BDS Visualizing Palestina", (3) experiências pessoais dos membros da mesa, e (4) a pesquisa científica "Pacification, Capital Accumulation, and Resistence in Settler Colonial Cities: The Cases of Jerusalem and Rio de Janeiro", dos pesquisadores Bruno Haberman e Reginaldo Nasser. A apresentação do poema e a descrição das experiências pessoais dos envolvidos teve um forte apelo emocional para os alunos ali presentes e para a autora do presente relatório.
Após as declarações iniciais dos membros da mesa, um membro da ESPP pediu para que eles analisassem a continuidade e ruptura com a questão palestina na administração Bolsonaro, as políticas colonizadoras do projeto do Estado de Israel, como a luta dos palestinos pode ajudar o Brasil, o papel da BDS[1], e o apartheid na Palestina[2]. Sem dúvida, o comentário que merece mais destaque foi o seguinte: o modelo de ações utilizado pelo BDS é extremamente bem-sucedido. Eu destaco o mesmo em decorrência do fato de que um dos membros da mesa estava usando um computador da marca HP, que, segundo o site oficial da BDS, é uma marca que coopera com a indústria militar israelense, em especial, com a marinha israelense. Além disso, o evento havia sido divulgado em uma página no Facebook, empresa que coopera com o sistema de vigilância da National Security Agency, dos Estados Unidos.
Os membros da ESPP permitiram que os convidados do evento realizassem perguntas no final. O Professor Doutor Edson Sayeg (PUC-SP), que me acompanhou ao evento, fez três perguntas, entre elas: por que a organização do evento não incluiu na mesa alguém com uma visão oposta para o debate, ou seja, alguém que acredita na legitimidade do nacionalismo Judaico? A resposta dada pelo membro da ESPP foi que eles não convidariam alguém que defende temas como limpeza étnica e o colonialismo. Desconsiderando, assim, a existência de arcabouços teóricos do estudo de Relações Internacionais que oferecem interpretações alternativas para os presentes fatos políticas, entre eles, os teóricos Realistas das Relações Internacionais.
Quando o professor Sayeg fez essas perguntas, ele se apresentou como um Judeu de descendência árabe e membros da audiência comentaram “ele é judeu”, como se isso o desqualificasse de realizar uma análise sobre o tema, o que me incomodou profundamente tanto como judia, quanto como analista de relações internacionais. A autora do presente relatório optou por não fazer perguntas ou emitir opiniões no momento do evento. Membros da plateia também sugeriram que a solução para o conflito seria o fim da existência do Estado de Israel e a saída da população Judaica de descendência europeia, americana, e latino-americana da região. Eles não detalharam como se daria, na prática, tal retirada ou saída dessa população, nem como isso seria compatível como o direito à propriedade privada da população Judaica israelense ou o que seria feito com os árabes israelenses que são sionistas ou que servem nas Forças de Defesa de Israel.
ANÁLISE DO EVENTO ACADÊMICO
Peço que o leitor me acompanhe em um exercício intelectual. Se você desconsiderar as frases de efeito que têm como propósito a infinita repetição de expressões como "imperialismo" e "opressão". Se você desconsiderar que a maioria dos gráficos apresentados vinham de uma fonte, a "BDS, Visualizing Palestina", no mínimo, tendenciosa.
Se você desconsiderar que que o think tank Freedom House define Israel como uma democracia multipartidária, que o International Institute for Democracy and Electoral Assistence (IDEA) define Israel como uma democracia liberal, que Israel nunca estendeu a sua soberania sobre os territórios da Faixa de Gaza/Cisjordânia e que dezenas de árabes (cristãos, druzos e mulçumanos) servem nas Forças de Defesa de Israel e no Serviço Nacional israelense.
Se você desconsiderar que os participantes do evento estavam sugerindo unir a luta pelos direitos de minorias com a luta de um grupo como o Hamas, que controla a Faixa de Gaza, é considerado uma organização terrorista (pela União Europeia e Estados Unidos), e realiza violações sistemáticas dos direitos humanos (de acordo com a Human Rights Watch), o que resta - em termos de produto intelectual - das ideias apresentadas? Resta uma das principais forças do mundo acadêmico brasileiro: o antiamericanismo. Este é o filtro pelo qual os participantes da mesa analisaram o conflito israelense-palestino. Neste contexto, o antiamericanismo estava sustentado na ausência de uma voz opositora na mesa de discussão e num arcabouço teórico chamado de Pós-Colonialismo Aplicado às Relações Internacionais[3].
A presença militar dos Estados Unidos do mundo e a cooperação (econômica, militar e diplomática) entre deste país com Israel, apresentados no evento com um grande mecanismo imperialista e opressor, é o que os Realistas das Relações Internacionais poderiam chamar de infraestrutura de segurança.
Tanto a China, quanto a Rússia e os Estados Unidos possuem essa infraestrutura que, em geral, é composta por uma combinação de alianças com potências regionais (ex: Israel, Japão e Alemanha), fatores geopolíticos e históricos, e instalações físicas/ferramentas militares (aeroportos, portos, porta-aviões), que sustentam as estratégias de defesa de superpotências ou sustentam logisticamente as força militares desses países. Destaco que, ao contrário do que foi ensinado no evento, Israel não aspira controlar todo o Oriente Médio, entre outras razões, porque este país não possui meios para criar a infraestrutura se segurança necessária para isso.
Se essa infraestrutura de segurança é tão ruim, por que não retirar isso do mapa? Se amanhã os Estados Unidos decidisse desmontar toda esta infraestrutura, quatro coisas aconteceriam: (1) a Rússia invadiria, pelo menos, o leste europeu, (2) os Alemães seriam forçados à responder com a construção de uma poder militar próprio, (3) os Chineses controlariam Taiwan, o Mar da China Meridional, e ameaçariam a segunda cadeia de ilhas do pacífico, e (4) uma corrida nuclear começaria no Oriente Médio e a Rússia controlaria a Síria (tendo como governante o Bashar Al-Assad).
Por quê? Porque os Estados Unidos exercem, no mundo, um imperialismo sem um império. Os impérios – aqui, no sentido de epicentros do poder mundial e não no sentido clássico da relação entre império e colônia - são a tragédia do sistema internacional, pois, ao mesmo tempo que eles exercem um poder sobre outros países que pode não ser bem-vindo, eles são capazes de gerar ordem em um sistema internacional que é anárquico. Ou seja, eles não são "maneiros", mas a gente precisa deles para que a experiência de violência na Síria não se espalhe pelo mundo.
Neste contexto, Israel, Arábia Saudita, e Afeganistão são aliados dos Estados Unidos no Oriente Médio. Os EUA se utilizam dessas alianças para tentar tornar a região mais estável e próxima aos seus interesses. No caso específico de Israel, essa aliança é mais profunda devido às semelhanças culturais e institucionais entre esses dois países ocidentais. Se não for os Americanos, serão os chineses a construir essas alianças, porque não existe vácuo de poder no sistema internacional.
Em suma, Israel é um país preso no conflito israelense-palestino, tanto quanto Brunei, Vietnã, Filipinas e China, estão presos num conflito regional que se arrasta há décadas, ou o Japão preso num contexto de conflito com a China. Nenhum desses conflitos é culpa do plano colonialista, opressor, imperialista, maléfico, dos Estados Unidos, na verdade, é culpa do equilíbrio de poder internacional e da natureza anárquica do sistema internacional.
CONCLUSÃO
Depois de tudo o que eu ouvi, eu cheguei à conclusão de que a USP pode fazer melhor. Começando pela promoção de eventos acadêmicos, sobre o conflito entre israelenses e palestinos, que não tenham como ponto máximo monólogos nos quais os membros de uma mesa de discussão repetem, em uníssono, as mesmas ideias.
As universidades deveriam ser espaços nos quais os jovens são expostos ao contraditório. Até para que eles possam observar que duas pessoas podem discordar uma da outra de maneira educada, com base em fatos, e sem se tornarem inimigos mortais. Isso, na visão de Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, é chave para você garantir a sobrevivência de uma república de homens livres, ou seja, da sobrevivência de uma forma de governo na qual as pessoas possam se autogovernar - tendo o poder limitado por mecanismos institucionais e legais de checagem e equilíbrio. Jefferson queria transformar as pessoas de vassalos de uma autoridade cujo poder era absoluto para cidadãos de um país.
Dentro dessa visão, a formação do conhecimento, a partir do acesso à informação e da possibilidade de ouvir o contraditório nos debates, seria um mecanismo pelo qual poderíamos evitar, em última instância, a tirania. Por quê? Porque pessoas que tem conhecimento tendem a ser mais vigilantes em relação a possibilidade de perder as suas liberdades para um líder político, para um Estado superprotetor ou para qualquer outra autoridade.
Ontem, o que eu vi, na USP, foi a transformação dessa incrível instituição em apenas mais uma bolha de internet. Uma bolha onde mentiras não são expostas contribuindo, assim, para uma tirania baseada em ignorância e intolerância, com verniz de academicismo e boas intenções.
[1] O BDS é o movimento internacional de Boycott, Divestment, Sanctions (BDS). Tal movimento é liderado pelos palestinos e luta pela justiça, igualdade e liberdade. Eles defendem que os países e nações devem realizar boicotes, sanções e desinvestimentos contra o Estado de Israel. Esta seria uma forma de forças os israelenses a abandonar o que eles definem como sendo uma sociedade baseada no apartheid e no colonialismo.
[2] Não havia uma entidade política soberana na região da palestina antes da criação do Estado de Israel ou da proposta da Solução por Dois Estados da ONU. Esta região era controlada por vários poderes, entre eles, o império Otomano e o Império Britânico. Contudo, os organizadores do evento e membros da mesa, ao se referirem à “Palestina”, com “P” maiúsculo, sugerindo que eles acreditam que tal entidade soberana existia, apesar da mesma não estar registrada em livros de História.
[3] As teorias de relações internacionais são ferramentas, utilizadas por analistas, para interpretar fatos da política internacional. Normalmente, os estudiosos de Relações Internacionais sabem que esse ou aquele pesquisador adotam essa ou aquela teoria, contudo, quem não é da área não tem a obrigação de saber disso. Logo, os organizadores do evento em questão deveriam ter explicitado o arcabouço teórico adotado e permitido que pessoas que adotam diferentes teoria, para interpretar fatos políticos, pudessem participar da mesa. Isso evitaria críticas de que o evento acadêmico em questão seria uma doutrinação ideológica mascarada de academicismo.
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